quarta-feira, 25 de março de 2009

José Saramago - A cegueira branca.

Em 1998, José Saramago tornou-se o primeiro escritor de língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura, com o Ensaio sobre a Cegueira. O português, nascido no dia 16 de novembro de 1922, em Azinhaga, aldeia ribatejana, muda-se aos dois anos para Lisboa onde freqüenta o ensino técnico, que, por razões financeiras, não conseguiu prosseguir. Exerceu a profissão de serralheiro mecânico, funcionário de saúde e previdência, tradutor, editor e jornalista. Em 1969, torna-se membro do Partido Comunista Português. A partir de 1976, dedica-se exclusivamente ao seu trabalho literário, primeiro como tradutor, depois como autor. Hoje vive com a esposa Pillar Del Rio na ilha de Lanzarote (Canárias) de onde lança ao mundo críticas contundentes à sociedade contemporânea.
Logo a partir da epígrafe do Ensaio sobre a Cegueira - “Se podes olhar, vê. Se podes ver. Repara.”- podemos notar a síntese da temática contida nas páginas seguintes. A gradação que se faz em olhar, ver e reparar anuncia a crítica social diluída nas trezentas e dez páginas de uma das mais consistentes obras da literatura mundial. A frase atribuída ao “Livro dos Conselhos”, implicitamente, faz a distinção entre a visão meramente física, parte dos cinco sentidos humanos, da percepção dotada de criticidade que faz reparar o mundo e refletir sobre ele.
Ensaio Sobre a Cegueira aborda uma sociedade que se viu assolada por uma epidemia de cegueira branca inexplicável, sem cura, sem precedentes que acaba sendo disseminada por toda a cidade. Primeiramente, manifesta-se em um homem no trânsito e vai se alastrando por toda a população, poupando apenas uma mulher. À medida que os infectados pela epidemia são colocados em quarentena num sanatório, as condições desumanas vão se agravando. A falta de alimento causada pela superlotação faz intensificar a degradação dos confinados.
A cegueira branca representa no romance não só a impossibilidade física de enxergar, mas também a alienação em que a sociedade está mergulhada. Essa conotação edifica na cegueira branca uma verdadeira metáfora. A alienação é a cegueira que não é fisiológica, mas também impede de enxergar, ou “reparar” a realidade social, como sugere a epígrafe. Essa cegueira desencadeia uma série de situações caóticas; da podridão gerada pelo acúmulo de fezes e de lixo pelo chão, ao abuso sexual em troca de comida. O alcance semântico que a obra almeja reflete a perda da essência humana na modernidade, resultado do individualismo, em detrimento da capacidade de indignação perante os desconfortos causados por um mundo violento e regido pela frágil figura estatal.
Sobre a relação do título com o conteúdo da obra, podemos identificar, mais uma vez, a perspicácia do Nobel de Literatura. Ensaio sobre a Cegueira tem o formato de romance (texto ficcional em prosa com pluralidade e simultaneidade dramáticas), no entanto, como o título anuncia, há, em suas entrelinhas, um verdadeiro ensaio (texto crítico onde o autor expõe suas idéias e reflexões a cerca de um tema). A narrativa ficcional dá forma artística aos elementos pertencentes à forma ensaística. À medida que os fatos acontecem na narrativa, vão se desenhando as críticas de forte teor social.
A protagonista da história é a “mulher do médico”, pois é a única não atingida pela cegueira branca. É como uma líder para o grupo, guiando-os para todos os lugares. Mulher forte, sensível, preocupada com o bem-estar do grupo. Nela se centra o sofrimento de enxergar, quando todos estão cegos. O sofrimento de poder ver a degradação provocada pela epidemia de cegueira branca. A personagem supera o papel de submissão e silêncio imposto às mulheres há séculos, assumindo o poder de decisão sobre o destino do grupo. Supera a crença de inferioridade que comumente é atribuída a elas. A solidariedade, sensibilidade, compaixão, da figura feminina contrapõe-se a agressividade, perversidade que há também na sociedade de cegos. Há, portanto, no romance-ensaio de Saramago, uma crítica feroz à sociedade patriarcal.
Ainda como influência direta na obra, podemos notar alguns reflexos das idéias políticas de Saramago. São os sutis traços marxistas que, em suma, traduzem que a valorização do mundo das coisas aumenta, em proporção direta, a desvalorização do mundo dos homens. Desse modo, a sociedade obcecada por valores materiais não enxerga a sua própria essência.
O Ensaio sobre a Cegueira tece crítica à sociedade capitalista, não no tom explícito da literatura engajada, mas sim na sutileza de uma prosa envolvente. A situação caótica narrada no livro evidencia a duplicidade de atitudes estabelecidas pelo indivíduo na atual estrutura social; o humano e o desumano, a solidariedade e a perversão. O homem se vê desumanizado. “Cegos que, vendo, não vêem."



Heitor Nogueira.


PS.:Texto adaptado do artigo que será defendido oralmente na VI Semana de Humanidades - UFC.
PS.2: O LIVRO GEROU O FILME HOMÔNIMO INDICADO AO LADO.